domingo, 23 de outubro de 2016

Chega de Fiu Fiu: Caso de assédio no ônibus

   Ela entrou no ônibus. Seu perfume entrou antes. Um misto de jasmim e rosa branca, delicioso. Suave, como uma manhã de abril. Mas, era setembro. Seu cabelo estava ruivo. Antes, loiro, castanho, com luzes rosas. Gostava de variar. Vaidosa, adoraria pintar de roxo e entrar numa banda de rock, mas tinha que pagar a faculdade. Ela se controlava. Arrumou o cabelo, acertou a tiara.


   Estava de bermuda jeans e de bata branca, bordada, presente de sua mãe. A bata. Sempre vestia algo para trazer sua mãe a memória. Havia apenas três meses que ela falecera. O luto apertava seu coração de uma forma intensa, ela queria gritar, no entanto não podia, num transporte público. Ela se controlava. Arrumara a bata, acertou o colar, com um pendente de coração, para o centro do decote.

   Mulheres cegas e com deficiência física são duas vezes mais abusadas que mulheres sem deficiência. Mulheres surdas cinco vezes mais. Mulheres com deficiência intelectual nove vezes mais. Se elas gritarem, ajude. Se elas não puderem gritar, gritemos por elas.



   Ela se sentara na segunda cadeira depois da porta, no corredor. Colocara a bengala tátil dobrada, fechada, no colo. Eu não disse antes? Ela é cega. Linda, inteligente, mulher e cega. A cegueira surgiu como consequência de uma doença crônica. Mas, não impediu de trabalhar, estudar, de seguir em frente. Arranjou muita força dentro de si, e foi à luta. Por vezes, em situações de preconceito, o desespero bate. Mas, ela se controlava. E reagia explicando, ensinando.

   Mas, ela não estava preparada para aquilo. Para aquela mão que tocou seu braço, sem avisar, sem pedir licença. Ela pensou ser um conhecido, tentando iniciar contato. Perguntou quem era. Ninguém respondeu. No coletivo cheio, a mão procurou sua coxa, ela continuava a perguntar quem era, o silêncio passou a se tornar abusivo, assustador, ela empurrava a mão, a mão voltava, ninguém ajudava. A mão tocou seu seio, ela tocou o sinal para descer do ônibus, teve medo do desconhecido estar por perto, entrou na primeira loja que encontrou. Pediu para saber em que lugar estava. Perdeu o chão, a tiara, o cabelo arrumado, ela não mais se controlava. Uma mulher veio saber o que acontecera. Ela não teve coragem de contar, disse apenas que se perdera. Bebeu água. Esperou. Pegou um táxi.

   Chegando em casa, chorou muito. Lembrou da mãe, pediu proteção. Como denunciar o que não viu, o que não sabe. Como se proteger de algo assim? Como lutar se ninguém ajuda? Teve mais medo ainda. Levou duas semanas para sair de casa de novo. Perdeu o trabalho. Quase teve que largar a faculdade. Por causa de uma mão. Da mão de um monstro. E do silêncio dos outros.

     Levou quase um ano para contar para alguém. Quase dois para falar comigo.
     Não pactue com isso. No lugar dela, poderiam ser milhões de elas.

* A história é verídica. Omiti o nome da minha amiga cega.

Enviado por Adriana Dias, Bacharel em Ciências Sociais em Antropologia,Mestre e Doutoranda em Antropologia Social - tudo pela UNICAMP. Coordenadora do Comitê "Deficiência e Acessibilidade" da Associação Brasileira de Antropologia, e coordenadora de pesquisa tanto no Instituto Baresi (que cria políticas públicas para pessoas com doenças raras) quanto na ONG ESSAS MULHERES (voltada à luta pelos direitos sexuais e reprodutivos e ao combate da violência que afeta mulheres com deficiência). É Membro da American Anthropological Association,e foi membro da Associação Brasileira de Cibercultura e da Latin American Jewish Studies Association.


 
Descrição de imagem: fundo branco letras na cor rosa onde está escrito Se elas gritarem, ajude. Se elas não puderem gritar, gritaremos por elas.
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